Introdução
A plataforma digital de pesquisa e busca Google retorna 242.000 resultados quando pesquisado os verbetes “curso psicanálise EAD”; e, 10.700.000 para os verbetes “curso formação psicanálise”. São inúmeras ofertas e anúncios que oferecem o serviço de formação, credenciamento de psicanalistas e orientação para iniciar os atendimentos e, conforme extraído de um dos anunciantes, ofertam uma “Formação Completa com Alto Nível de Capacitação e Reconhecimento no Mercado. Seja um Psicanalista Profissional Credenciado e Altamente Capacitado. 20 Anos de Experiência. Aulas Práticas” ou conforme outro “Formação de Psicanalista Ultra Rápida”. Outras plataformas divulgam o acesso ao tripé formativo proposto por Freud, a saber, a teoria, a análise pessoal e a supervisão, e, costumam apresentar uma sequência de perguntas e respostas referentes ao processo formativo, duração e exercício profissional, sendo bastante comum destacar o tempo de duração para formação, festa de formatura, estrutura curricular e um raso debate sobre o exercício da atividade não estar restrista ao ato exclusivo da Medicina ou da Psicologia.
Justamente após o enxurro de cursos de coaching, nos vemos em crescente oferta dos cursos de psicanálise sem registros históricos, acadêmicos ou com garantias de um “levantamento e a censura crítica de tudo o que é oferecido nesse campo pelas publicações que se pretendem autorizadas por ela” (Lacan, 1964, p. 237). Desta maneira se figura a repetição de uma pretensa psicanálise inefável e/ou associadas às práticas que não coadunam com a psicanálise pura, aplicada e recenseada pelo campo freudiano.
Diante deste cenário, uma questão se comparece: em nossos dias, qual é a especificidade necessária para o restabelecimento e a manutenção do avesso da escola psicanalítica pelo registro do ensino de Lacan? O objetivo deste ensaio é provocar uma denúncia dos desvios e concessões contemporâneos que amortecem o progresso e emprego da Psicanálise. Para isso, se fez necessário revisar as características do ato de fundação da Escola Freudiana de Paris que apontam para o avesso da psicanálise proposta no Seminário 17, de Lacan a fim de retomar o caráter necessário da mudança de discursos, conforme estabelecidos no Seminário 17 a fim de (re)encontrar o sentido da experiência psicanalítica.
Espera-se que este estudo colabore com aqueles e aquelas que buscam o conhecimento psicanalítico como forma clínica e terapêutica, para melhor elucidar o estatuto da escola e qualificar a verdade do ensino da Psicanálise, segundo a proposição da Escola e do Esnino de Lacan.
Características da subversão da Escola e do Ensino de Lacan
Tão sozinho quanto sempre esteve, em 21 de junho de 1964, Lacan redige o Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris e se apresenta como diretor para criar e garantir um novo organismo com o objetivo de restaurar a verdade deste campo aberto por Freud. Sua metáfora para esta empreitada acontece pela imagem de uma ceifa cortante que fosse capaz de reconduzir o saber psicanalítico para uma práxis original e marcada pela prática e serviço de trabalhadores decididos, porquanto, os próprios estudantes da Psicanálise (Lacan, 1964).
Para alcançar o êxito deste resgate dos parâmetros freudianos para a psicanálise, a Escola de Lacan insistiu no estabelecimento do avesso para constituir o desenvolvimento de uma Escola que viesse refletir e valorizar o objeto mais importante da Psicanálise: o desejo. Ora, se a Escola Lacaniana se inscrevesse na mesma cadeia de significantes acadêmicos e escolares em nada possibilitaria ao estudante experimentar e ocupar um lugar de um sujeito, lugar este de valor dado ao paciente que receberá pela sua escuta. Ao contrário, quando submetido a uma lógica de nivelamentos e repetições das indústrias escolares e acadêmicas contemporâneas também se relega ao lugar do gozo que não registra nenhuma tolerância à demora própria de certos estágios do desenvolvimento e do longo exercício do afrouxamento das identificações que toca a identidade do sujeito.
Neste sentido, o lugar que a Escola e o Ensino de Lacan requerem é da ordem de um rompimento radical para um avesso que seja capaz de inscrever a Escola em uma cadeia linguística que possa reivindicar uma subversão que o próprio desejo deve fazer sobre o mal-estar da cultura. Isto é, uma Escola que espelhasse em sua organização, práxis e ensino o avesso que faz superar o impossível em suportável, emergindo, desta maneira, um estatuto diferenciado do modelo escolástico e mosaico (Moisés ou Moi és) de nosso tempo.
O resistente modelo das nossas escolas modais tem suas estruturas similares as das religiões mosaicas, possuem estreitas identificações com o modelo judaico-cristão por meio controle, seriação, penas e uniformização. Isso se repete e se impõem por via de herança histórica, mas se perpetuam através das práticas religiosas cada vez mais radicais, emotivas e anti-iluministas. O resultado desta escola escolástica-mosaica é a eliciação de modelos normativos, pedagogia bancária e ensino técnico, que não toleram falhas no seus sistemas controlados de transmissão do saber que possa revelar qualquer descontinuidade ou incompletude, mesmo que isso seja próprio do sujeito que a frequenta, e que por isso mesmo, passa a se perceber como não pertencente (Silva & Bianco, 2009).
Uma Escola Psicanalítica que pretende (de)formar seus alunos para que possam franquear o percurso do desejo dos seus pacientes, parece ter que se apropriar de estruturas e funcionamentos que repitam em si mesma a especificidade da operação analítica, mesmo que lhe custe ter que negar-se o conceito de escola e escolarização, formatura e formação, conforme estabelecidos pela cultura totémica e mosaica. Assim, determinar um curso escolar secular para uma formação psicanalítica, afronta diretamente a concepção de uma (de)formação onde propiciaria ao Analista experimentar o lugar do suposto-saber e objeto-causa que convoca “o sujeito inconsciente a se responsabilizar por ocupar um lugar na cadeia que terá feito seu” (Silva & Bianco, 2009, p. 217).
Esta reflexão também se estende ao tempo formativo. Nas recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, Freud convoca, todo àquele que toma seu trabalho a sério, a tomar o curso da análise pessoal duradoura, visto que a relação entre o estudioso e o seu guia possibilitaria aprender um pouco mais sobre sua relação com seus pacientes e sobre si, a fim de não projetar para forma o que é seu (Freud, 1996). As condições de uma relação terapêutica duradoura e a relação com seu “guia” são contrárias a impessoalidade da relação com o saber-totem das escolas mosaicas que retumbam por meio dos seus inúmeros tabus. A resposta sobre o tempo da formação para o analista da Escola de Lacan é tão importuna quanto ao que o paciente faz ao médico no início do tratamento: “Quanto tempo durará o tratamento?” A resposta para esta angústia é tão irrespondível quanto ao tempo da análise e é respondida no mesmo nível da metáfora do caminhante: “Caminha!” (Freud, 1996). Nas palavras de Freud, explicitamos: “Para falar claramente, a psicanálise é sempre questão de longos períodos de tempo, de meio ano ou de anos inteiros – de períodos maiores do que o paciente espera” (Freud, 1996, p. 145). O tempo formativo uma ética categórica deve estar na função analítica, portanto, não marcado pelo cronos, mas determinado por si mesmo, da mesma forma que a alta do paciente, pois cada um deve “torna-se assim responsável por sua duração” (Silva & Bianco, 2009, p. 217).
Desejoso por uma formação psicanalítica que pretende se aproximar da experiência analítica, Lacan propôs a subversão pelo mesmo registro do campo da linguagem: (1) uma revisão estrutural da formação; (2) da realização de tarefas por meio do comprometimento e com um controle interno e externo que assegurasse a seleção, a discussão e o destino dos trabalhos de cada um; e, (3) o estabelecimento de uma organização circular firmada na experiência, distanciando-se assim, de uma iniciativa pessoal e hierarquizada de controle e construindo os alicerces da escola em três seções chamadas de seção de psicanálise pura, a seção de psicanálise aplicada e a seção de recenseamento do campo freudiano (Lacan, 1964).
A garantia de uma escola contemporânea é o ensino para o aluno, por outro lado, a garantia da Escola de Lacan é a manutenção do desejo. A Escola Psicanalítica não depende do ensino e nem o dispensa, mas aceita e instrui para que ele – o ensino – se desenrole fora dela (Lacan, 1964). Por este quase-axioma, Lacan assegura a inexistência de um lugar-do-saber, que não podendo existir no campo clínico também pode ser estimulado no espaço da transmissão. O Ensino acontece fora da escola e apartado do discurso do mestre e senhor. Desta forma, juntamente com os planos de trabalho e organização, Lacan estrutura duas garantias para a práxis e a doutrina da psicanálise: (1) a autenticação de trabalhos que “elimine qualquer conformismo preconcebido” (Lacan, 1964, p. 237) e (2) um ensino específico oriundo das análises do próprio Lacan a quem ele chama de “o meu ensino” (Lacan, 1964).
O avesso do Ensino de Lacan acontece quanto (d)escola o seu Ensino da escola, deste modelo mosaico e estabelecido em rígida verticalidade que destaca alguém que sabe ou que possui o saber, daquele que já foi formado. Podemos dizer que a psicanálise desfaz a cola de alguém que ensina para quem aprende, isto é, Lacan estabelece uma ex-cola entre ensinagem-aprendizagem. Demarca a necessidade de escola que é castrada e não se perde-acha no discurso da histérica ou do universitário, isto é, não se aterroriza saber se tem o que ensinar porque é faltosa ou não se engoda de rebuscados conceitos para esconder a falta. É àquela que funciona a partir da emersão do desejo, portanto, uma E$COLA.
O Ensino de Lacan, este não se dá por meio de comprimidos, isto é, por meio de resumos ou manuais. O ensino de Lacan tem um lugar que demanda um engajamento em algo que está sempre em vias, uma coisa não-finda, empurrada pelo ato em qualquer sentido ou direção. A pretensão de ensinar Psicanálise no modelo escolar controlado e do lugar-do-saber não compreende o quanto o inconsciente é vigoroso. É o próprio Lacan quem chama de “louco” quem elucubra o inconsciente como um pensamento ou algo passível de conhecer por meio da ensinagem de um saber, não almejamos o saber, mas aquele que diz que sabe ou não-sabe. Nas suas palavras, lemos (Lacan, 2006, p. 15):
Se são pensamentos, isso não pode ser inconsciente. A partir do momento que isso pensa, isso pensa que isso pensa. O pensamento é transparente em si mesmo, não se pode pensar sem saber que se pensa.
A Psicanálise pode ser um assunto que pode ser conhecido e encerrado para qualquer um, mas não para um psicanalista. Da mesma forma como um sujeito e seu desejo não são serem acabados, os psicanalistas são os únicos que não sabem o que a Psicanálise de fato é. Segundo Lacan (2006), a Psicanálise guarda consigo um peso próprio e uma dignidade chamada de extraterritorialidade, tal como existe algo que se pensa, a psicanálise é capaz de comunicar o que não esperávamos, portanto, não encerrado ou sabido. Este é o seu efeito correlato, subversivo, avesso e necessário: o efeito-surpresa. É este efeito que ultrapassam os módulos e os livros e que mantém o verdadeiro como novo, é o que sustenta sua forma de transmissão. “Tudo leva a crer que o que a verdade diz não o diz absolutamente da mesma forma que o discurso comum o repete” (Lacan, 2006, p. 25), leia-se as repetições das lições programadas das escolas tradicionais, dos componentes curriculares, do e-learning e das vídeos aulas.
A especificidade da Escola Psicanalítica por Lacan, ao destituir as repetições das lições, determina que haja no sujeito um desejo de conhecer a Psicanálise ou a si mesmo, assumindo o papel da sexualidade para exercer sua função específica de buscar a verdade. Em outras palavras, sendo o sujeito e a psicanálise oriundos do ato, este sujeito, que é sexual, só acessará a psicanaálise na medida que a sexualidade fizer furo na verdade, portanto, na medida que perceber que a psicanálise é não-pronta, não-escrita, não-seriada e não-completa; oposta aos cursos formativos padronizados.
O Ensino de Lacan
A característica essencial do Ensino de Lacan não acontece dentro da Escola. Para circunscrever a origem do seu Ensino, Lacan afirma ser bem simples: é a linguagem, nada além disso! A linguagem que está presente antes do homem, faz nascer o homem e o mundo. Como diz Lacan: “É porque há linguagem, como todos podem perceber, que há verdade” (Lacan, 2006, p. 37) e, da mesma forma, “A verdade só começa a se instalar a partir do momento em que há linguagem” (Lacan, 2006, p. 38).
Com algumas danças de letras e um punhado de algarismos Lacan afirmou que a verdade do inconsciente não funciona na mesma lógica do pensamento consciente e tratou de empreender busca para saber qual seria esta lógica do aparelho linguageiro que é tal como uma aranha, mas que possui presas (Lacan, 2006).
O Ensino de Lacan marcado pelo inconsciente não pode ser construído pelas categorias lógicas de Piaget, pois esta só dá conta do que está estabelecido na consciência e não nas causas da assimilação. Quanto se interroga a lógica em uma criança, ela responde na lógica que já está estabelecida, mas não na causa da lógica, isto é, aquele que sabe que tem a lógica. “O sujeito que nos interessa – sujeito não na medida em que faz o discurso, mas em que é feito por ele, e inclusive feito como um rato – é o sujeito da enunciação” (Lacan, 2006, p. 45). Esta explicação evidencia o quanto que as formações sob os ditames piagetianos, tal como as formações em psicanálise universitárias e em cursos formais, são insuficientes para conhecer quem faz o discurso que é dito e não-dito.
Sob o medo de não ser deseja do por Outro, um estudante de psicanálise poderá render-se sob a própria castração e buscar nos módulos e estruturas escolares o objeto perdido. “A castração, primeiro é preciso admiti-la” (Lacan, 2006, p. 51). Para esta substituição criam-se todos os tipos de histórias, falácias de completude nas formações e reconhecimento de mercado, leia-se Nome-do-pai, que impede do futuro analista se a ver com o princípio fundamental do sujeito, seu complexo de édipo. Um analista que nega-se castrado em seu saber se engana com objeto substituto, tal como o canudo do diploma, a carteira ou a beca, também tenderá praticar a clínica mais anti-ética de todos os tempos: a clínica que ensina a sublimação, àquela que oferece falos falaciosos para enganar a falta.
A finalidade do Ensino de Lacan é deslocar analistas do discurso do mestre e que estejam “à altura do sujeito”, “um sujeito segundo a linguagem é quele que conseguimos depurar com grande elegância na lógica matemática(...), um fruto maduro da cadeia significante (...), um poeta” (Lacan, 2006, p. 53). Mesmo que não se mexa, que se cale três quartos do tempo, não se trata de uma experiência de observação, se trata de uma provocação no lugar do objeto pequeno a que não se explica pelos cursos, pelo tempo e nem substituindo a castração. O sujeito está longe dos modelos homogêneos (Heidegger), pois a linguagem faz dele “inatural” (Husserl) e longe das escolas de nossa época.
O sujeito falha, rateia, sonha, ri. É vago, deseja, foi resto e é único. A E$SCOLA e a psicanálise também são assim. O sujeito não aparece diante do que não objeto (ob-jet e su-jet). Enquanto o campo da psicanálise estiver formal e estruturado na suposta perfeição dos moldes piagetianos o sujeito não fala. Se o sujeito é substância antes de tornar-se um, a diferença está na sua capacidade de fal(h)ar de um objeto e não tomá-lo como uma verdade via construções acadêmicas.
O psicanalista “sabe muito bem que não sabe, e que tudo que poderá forjar como saber próprio arrisca-se a se construir como se ele fizesse uma defesa contra a sua própria verdade” (Lacan, 2006, p. 121-122). Isso é o que sabemos muito bem, que não sabemos, que não temos formaturas, nem diplomas e nem carteiras. Que tudo o que excede a certeza do efeito-surpresa e do suposto-saber são determinadas pela fantasia, a quem, pela análise-pessoal entendeu que não deve manter uma relação de dependência ou utilizá-la como presente para seu complexo de castração reprimido.
Como diria o próprio Lacan, saberemos se de fato o ouvimos se compreendermos que o “analista enquanto um homem entre outros, que deve saber que não é nem saber, nem consciência, mas depende tanto do desejo do Outro quanto de sua fala” (Lacan, 2006, p.124).
O avesso do discurso do analista
Aqui pretendo continuar o trabalho
Referências
Freud, S. (1996). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise [1912]. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Vol. XII (1911-1913). Imago.
Lacan, J. (1964). Ato de fundação. In Outros escritos. Zahar.
Lacan, J. (2006). Meu ensino (A. Telles, Trad.). Zahar.
Silva, A. T., & Bianco, A. C. L. (2009). O Moisés de Freud: Saber e transmissão na psicanálise. Estilos da Clinica, 14(26), 216–235. https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v14i26p216-235
Espera-se que este estudo colabore com aqueles e aquelas que buscam o conhecimento psicanalítico como forma clínica e terapêutica, para melhor elucidar o estatuto da escola e qualificar a verdade do ensino da Psicanálise, segundo a proposição da Escola e do Ensino de Lacan.
Que este estudo esteja só no início é muito relevante !