Aos olhos atentos do pesquisador, o mundo tem um sentido particular criado pela sua interpretação e adquire contornos próprios segundo a perspectiva do seu foco teórico; o caos se organiza e a disseminação da ideia se torna cosmético para os bons entendedores. Não é diferente dentre tantos olhares o entendimento singular de um psicanalista que, empossado das Teorias do Inconsciente, contempla na personalidade humana traços peculiares que explicam dos mais simples aos mais complexos comportamento, suas escolhas, impasses, erotismo, psiconeuroses e personalidade.
A arte é uma tentativa de interpretação de mundo, uma explicação, um recorte, uma revelação dos conteúdos do inconsciente do autor, de outrem e/ou de estruturas psicológicas de um grupo, é produção de um conteúdo de visão singular. Na diversidade, a arte provoca ao se oferecer como um espelho à psicologia humana, apontando horizontes de um saber latente do autor como uma possibilidade de todos terem um saber pessoal, portanto singular, a partir do que lhe afeta.
Neste livro nos debruçamos sobre a ilustre, controversa e famosa figura do Don Juan, ícone da libertinagem e da sedução, tantas vezes interpretado e (re)lido. Mas o que justifica este fenômeno? Don Juan é atual e eterno por ser estrutura mental, uma disposição e organização da alma humana. É o manifesto de um conteúdo da personalidade, que é possibilidade de todos, ainda que na negação de sê-lo, por recalque, desconhecimento ou latência, é uma marca pertencente aos seres que desejam. Don Juan é um discurso sobre nós e qualquer um, portanto não deixará de existir independente do sexo, da orientação sexual ou da escolha religiosa-moral de cada um. Don Juan é um verdadeiro compêndio de exemplos acerca da nossa relação com as necessidades, conquistas, vivências da satisfação ou frustração constante nos nossos aparelhos psíquico por sermos vivos. Isso analisaremos adiante.
Encontramos em Don Juan o amor pela libertinagem, o ardente desejo de seduzir, a paixão pelo jogo teatral da conquista das mulheres. Inconsequente e voraz utiliza do investimento da sedução para alcançar a satisfação amorosa, embora esta seja a contradição fundamental de toda sua história. Será que Don Juan de fato consegue a satisfação em suas conquistas e relações? Existe alguém que possa satisfazer as necessidades do Don Juan? O objetivo da relação erótica de Don Juan está na relação, no jogo, na conquista ou na conclusão?
Segundo Freud, aprendemos na relação simbiótica com a mãe enquanto lactente, por meio do alimento, afago, segurança e calor, uma experiência de satisfação em contrapartida de um desconforto orgânico natural suscitado no bebê ao qual chamamos de “estado de desamparo”. Como o corpo do bebê é incapaz de produzir algo que consiga responder as suas tensões, a ação de uma pessoa externa aparece como um objeto que suprime esta necessidade. Nesta experiência de satisfação fundamentam-se basicamente três consequências marcantes e definidoras para a vida anímica do sujeito: (1) a experiência de satisfação passa ser ligada à imagem do objeto que proporcionou a satisfação, deste modo, o novo estado de tensão reativará a imagem do objeto, que por ter sido vivenciado pela percepção, agora torna-se desejo, ao qual inaugura o processo de alucinação do objeto desejado; (2) quanto maior a tensão, maior será a alucinação do objeto de desejo do bebê, assim iniciam-se os primeiros indícios do teste da realidade, função do EU, ao mesmo tempo que a ausência e a expectativa do objeto faz crescer a alucinação proporcionando consequentemente as primeiras experiências de decepção, ao qual fundamentará todas as outras; (3) o conjunto destas experiências de satisfação constituirá a base do nosso desejo: a satisfação real e a satisfação alucinatória, onde o desejo se origina na busca da satisfação real, porém se forma no modelo da alucinação primitiva.
Como primeira consequência, a teoria psicanalítica prevê a possibilidade do Don Juan não ter tido um objeto que satisfizesse da experiência originária satisfatória (mãe) facultando a falta de associação de um valor eletivo na constituição do seu desejo, desta forma, passaria não existir reinvestimento de um objeto quando lhe falta o objeto real, ao que por fim, faltará sempre um modelo para a busca de novos objetos satisfatórios. No filme Don Juan de Marco, de 1995, estrelado por Johnny Deep, aparece exatamente esta hipótese no instante que o jovem sai do quadro alucinatório de busca do objeto e se depara com a interpretação do analista que lhe apresenta seu conflito diante da mãe prostituta investida por ele como “santa”. Assim, o Don Juan é condenado a buscar o seu objeto de amor baseando-se sobre esta reinvestida alucinada da alucinação primária, sua mãe inexistente e idealizada.
A mãe que hiper-satisfaz seu filho igualmente contribui para a formação do Donjuanismo, pois sendo a satisfação originária e sua função algo decisivo para a procura posterior dos outros objetos, o extremo zelo no apaziguamento das necessidades funda uma exigente satisfação alucinatória que impossibilita realizar o desejo com qualquer ser limitado pela existência, portanto vivente no real. A fixação nesta mãe alucinada é a satisfação da sua segurança e auto-estima, porém inatingível por ser perfeita, e é exatamente isso que justifica a necessidade da trocar do objeto de amor quando a mulher torna-se real, pois o efeito da decepção da limitação é a propulsão da continuidade da procura de alguém tão perfeito quanto o alucinado pelo seu desejo.
Aproveito o ensejo para estender esta reflexão à Psicologia do Inconsciente de Jung que conceitua o Complexo Materno no Filho decorrentes da relação entre criança e mãe, três efeitos típicos: a homossexualidade, o donjuanismo e a impotência. Na homossexualidade, o componente heterossexual fica preso à mãe, enquanto que no donjuanismo, a mãe é procurada “em cada mulher”.
A Psicologia do Inconsciente, portanto ilumina o entendimento de que tanto a homossexualidade quanto o Donjuanismo possuem o mesmo princípio, a saber, a relação mãe-filho em seu complexo materno na criança e embora tenham saídas diferentes, a razão permanece única, ao que justifica o início do texto ao qual apontei o Don Juan como estrutura psíquica de todos, pois sendo a saída própria jamais fugimos da origem arquetípica de um Complexo Materno e suas múltiplas soluções.
Não contrariando a teoria freudiana, os acometidos do donjuanismo tendem possuir traços homossexuais inconscientes, recalcados ou latentes, ao amarem mais a si mesmos, ou seu eu ideal (herdeiro no narcisismo primário) acima de qualquer outra pessoa que possam conquistar. Assim, tanto a visão da Experiência da Satisfação Originária como o Complexo Materno, colaboram para percebermos que o essencial em Don Juan é ter cada uma das mulheres, ao qual não são substituídas, pois o verdadeiro objeto a ser amado não é substituível, ou seja, o próprio Don Juan que se ama si mesmo nas suas mulheres.
Existe ainda outro ponto a ser elucidado acerca da Psicologia do Don Juan: o jogo da sedução. A Teoria Psicanalítica reconhece este comportamento como sendo um típico jogo histérico, que embora seja um tipo clínico de neurose, inicialmente pensado ser exclusivo das mulheres, é hoje possível encontrar suas simbolizações e sintomas igualmente no homem, embora sejam mais difíceis, porém com a mesma caracterização teatral com a qual criam suas vítimas ao se portarem como tal.
É pela castração simbólica que pai permite ao filho ter seus próprios desejos e ser sexuado e é este movimento que permite a marca de um objeto imaginário que traria a ilusão de gozo pleno para o sujeito. Na histeria a função paterna é insuficiente, visto que o pai não rompeu a simbiose mãe-filho (castração), assim o filho torna-se o falo da mãe, o desejo do desejo da mãe. A eterna luta do histérico é tentar regressar ao narcisismo da simbiose para alcançar a completude. Assim, o histérico é sempre insatisfeito, sempre à mercê do outro, são narcisistas, sedutores, amantes intensos e inconstantes e com grau variável de homossexualidade e masturbação. Comumente aparecem traços de exibicionismo como uma manifestação perversa, práticas sadomasoquistas que aparecem como tentativa de fazer parecerem obstinados e que desprezam o objeto de prazer. Ledo engano! A contradição de não fixar em uma mulher aponta a necessidade de receber o amor de todas pelo exercício marginal da sedução que o mantém sempre amado, reconhecido e faz da sua vida uma procura infindável por conseguir a satisfação, mesmo sabendo ser um eterno insatisfeito.
"Na histeria a função paterna é insuficiente, visto que o pai não rompeu a simbiose mãe-filho (castração), assim o filho torna-se o falo da mãe, o desejo do desejo da mãe"
Na histeria a função paterna é insuficiente, visto que o pai não rompeu a simbiose mãe-filho (castração), assim o filho torna-se o falo da mãe, o desejo do desejo da mãe.
A insatisfação insurge como resultado da falta de uma figura que possa se identificar, e conquistar eternamente o amor, neste caso aquele que não o castrou, assim passa-se buscar na figura materna uma definição de pai, de masculino. A obsessão de ter a mãe é o desejo de encontrar, através dela, a identidade da figura paterna para garantir a virilidade ao que mais tarde isso é transferido para a mudança de mulher para mulher para buscar o saber que lhe falta: saber o que é um homem. Nesta organização podemos constelar o Donjuanismo como uma forma de afirmar a si próprio uma virilidade ameaçada pelos traços homossexuais, ao mesmo tempo em que se percebe a existência do relacionamento triplo, pois o conhecimento sobre o homem da seduzida é tão importante quanto à sedução ao ponto de perceber-se que é possível ser o saber sobre o homem a verdadeira busca do Don Juan.
Por fim, Don Juan analisaremos o recalque homossexual refletido na máscara. Como mecanismo de defesa Don Juan prefere não perceber que não haverá gozo e saber no jogo da sedução, então, é preferível que ao se oferecer, se guarde; que o ato não se consuma; que se deslize diante do desejo do outro para ele não seja percebido como se vê: sem o saber, desvalorizado, baixa autoestima, incompleto e insatisfeito. Assim decide ser preferível esconder-se sobre a máscara. Impossível imaginar Don Juan sem suas máscaras. Jung explica que usamos máscaras sociais por necessidades, pois do contrário seríamos sufocados pela realidade. Em Don Juan, a máscara esconde sua anima, porção feminina da sua personalidade, ao mesmo tempo em que no baile de máscaras o uso da mascará sobre a máscara apenas explicita o que realmente ele é, embora isso se mantenha em segredo, pois outros também a usam em inversão, mantendo um jogo de tornar-se homem para seu pai.
Certamente existem mais interpretações que podem ser acrescentadas à instigante personalidade do Don Juan, mas como ele mesmo prefere não esgotaremos o que não se pode e respeitaremos o que se deve, pois quando falamos de arte teorizamos e quando falamos de pessoas apenas somos solidários aos que igualmente alucinam serem felizes como estão, sem se darem conta que amar é dar o que não temos de melhor para recebermos do outro aquilo que precisamos para sermos melhores. E assim voltamos a sermos todos um pouco de Don Juan.
Professor Diogo, encantada com sua descrição acima sob a perspectiva psicanalítica do Donjuanismo!